É no mínimo interessante como o novo (ou até o não-tão-novo-assim) sempre chega e divide as pessoas entre os que o aceitam e os que não aceitam. É natural ao ser humano, que não nos corrijam agora os estudiosos da essência humana, ser saudosista daquela realidade que muitas vezes nem vivemos, mas que sabemos ser muito melhor que a nossa. Outras ideologias, outros comportamentos, outras liberdades, outros deveres, outras manifestações, tudo parece ter sido infinitamente melhor quando nós não estávamos lá. O novo então, ou que venha para ser melhor que esse passado ausente, ou que venha para ser imagem e semelhança desse mesmo tempo.
Berman, em seu texto Modernidade: ontem, hoje e amanhã (Tudo que é sólido se desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Schwarz, 1986) , faz uma crítica ao modernismo e à modernidade e, ao querer ver o modernismo voltando as suas raízes com o intuito de nutrir-se delas e se renovar, nada mais é que um sentimento saudosista e a busca de um antropofagismo modernista (por mais que isso nos pareça familiar).
Fazer o modernismo de amanhã crescer buscando fonte no modernismo passado.
Saudosismos à parte, vimos emergir em tempos mais recentes críticos como Focault (citado por Berman) e Zigmund Bauman. Ambos tomam a crítica da sociedade contemporânea levantando questões sobre as (i)mobilidades de diversas categorias presentes no nosso dia-a-dia (mesmo que não as percebamos de cara).
Trazendo o contexto teórico aos poemas de Paulo Leminski, mais especificamente ao livro La vie en close (1991), tomamos como parâmetro dois de seus poemas.
OUVERTURE LA VIE EN CLOSEem latim
“porta” se diz “janua”
e “janela” se diz “fenestra”
a palavra “fenestra”
não veio para o português
mas veio o diminutivo de “janua”,
“januela”, “portinha”,
que deu nossa “janela”
“fenestra” veio
mas não como esse ponto da casa
que olha o mundo lá fora,
de “fenestra”, veio “fresta”,
o que é coisa bem diversa
já em inglês
“janela” se diz “window”
porque por ela entra
o vento (“wind”) frio do norte
a menos que a fechemos
como quem abre
o grande dicionário etimológico
dos espaços interiores
Nesse poema, usamos como base o trecho em que Berman comenta sobre “...a internacionalização da vida cotidiana - nossas roupas e objetos domésticos, nossos livros e nossa música, nossas idéias e fantasias -, que espalha nossas identidades - por sobre o mapa-múndi” (p. 29). Cremos que aqui nos deparamos justamente com essa internacionalização moderna de que nos fala Berman. Leminski se utiliza de palavras em três línguas diferentes: latim, inglês e português e, ao mesmo tempo que as põe em contato, as exclui por seus significados e derivações. Também recorre à volta às origens de Berman, não no sentido próprio do retorno ao “primeiro modernismo”, mas à pura volta à etimologia das palavras, buscando a raiz principal da nossa língua: o latim. O termo sendo modificado do latim até chegar ao português brasileiro nos passa a idéia da fluidez que Bauman tanto conceitualiza e traz como recorrente na sociedade (pós)moderna. A palavra que, para Focault é a representação do poder, fixo e imutável (até que se prove o contrário), se torna um paradoxo a partir da conceitualização de Bauman, que pensa na sua liquidez e subversão (qualidade do que é móvel).
COMO ABATER UMA NUVEM A TIROSsirenes, bares em chamas,
carros se chocando,
a noite me chama,
a coisa escrita em sangue
nas paredes das danceterias
e dos hospitais,
os poemas incompletos
e o vermelho sempre verde dos sinais
Aqui recorremos à modernidade inspirada no surgimento das máquinas e na frase de Berman: “...algumas das mais importantes variedades de sentimentos humanos vão ganhando novas cores à medida que as máquinas vão sendo criadas” (p. 9). Ao longo do poema, Leminski vai enumerando sentidos (visão, audição) a partir das imagens (“sirenes, bares em chamas”) e a eles dá uma cor de sangue, uma cor vermelha, tudo refletido na imagem da noite, a noite moderna, a noite do século XX (e XXI). Se pensarmos bem, em que outro tempo a noite poderia ser descrita a partir de imagens do caos que se consolidam na cor vermelha de sangue? Obviamente, só depois de termos todos os elementos propulsores a esse caos e, no caso, nos tempos atuais, onde a imagens de carros se chocando, sirenes tocando, sangue em danceterias e hospitais se fazem presente. Aqui é onde mais bem vemos emergir as construções modernas influenciando na poesia e alterando a cor dos sentimentos do poeta, que sabe como abater a nuvem branca de um céu negro da noite, usando o vermelho, que mancha ambas as cores.